A VOZ DO PASTOR | Reflexão sobre a Liturgia do III Domingo da Quaresma

Reflexão sobre a Liturgia do III Domingo da Quaresma


Queridos irmãos e irmãs em Cristo Jesus,


Iniciamos uma nova coluna neste blog, por meio da qual compartilho carinhosamente convosco algumas reflexões sobre a vida litúrgica da Igreja, mais precisamente analisando os textos propostos no lecionário para as celebrações dominicais e as solenidades e principais festas do ano litúrgico, exercendo, desta forma, o múnus de ensinar a porção do povo de Deus a mim confiada nesta Igreja particular de Aparecida, prestando serviço à verdade, para que assim possais receber o Evangelho em vossos corações.

Abrindo a terceira semana do Tempo da Quaresma, a Santa Mãe Igreja nos ofereceu, por meio da liturgia dominical, textos muito importantes para refletirmos em nosso peregrinar esperançoso neste novo êxodo no qual estamos inseridos. Inspirado por essa bela liturgia, gostaria de colocar diante de vós uma imagem, um pensamento e um sentimento.

Em primeiro lugar, convém refletirmos sobre a imagem — profundamente simbólica —  da árvore, desde a sarça no deserto à figueira na vinha. Para tal, gostaria de dialogar com um texto de Adriano Cézar Oliveira e com um artigo intitulado “O simbolismo e o significado do ícone da Sarça Ardente da Mãe de Deus”.

A imagem da sarça é contemplada por Moisés num lugar que é sempre associado nas Sagradas Escrituras ao encontro com o sagrado. O pastor do rebanho de Jetro é tomado daquela atitude filosófica conhecida como thaumázein, que significa espanto, maravilhamento. Para os filósofos gregos Platão e Aristóteles, o thaumázein conduz ao despertar da reflexão, ou ao filosofar. Antes, o thaumázein conduz o ser humano à disposição, dimensão afetiva que convoca a um apelo, à dimensão do páthos, entendido como afeto e paixão. Não obstante essa qualificação, páthos sugere paskhein, com significado de deixar-se levar, deixar-se convocar.

 Apareceu diante de Moisés o anjo do Senhor numa chama de fogo, do meio de uma sarça. Ele olhava, mas a sarça ardia sem se consumir. Aquele que viria a ser agente libertador do povo era conduzido no Horeb à contemplação mística, ao cerramento dos olhos da carne, ao despertar dos sentidos interiores e ao mergulho profundo no mistério do Verbo, que conduz a história humana. Assim como Moisés, nós, peregrinos, somos convidados a tirar as sandálias e contemplar o mistério com profunda reverência.

Na experiência de Moisés diante da sarça ardente, o reflexo de sua luz nos olhos do profeta marca o início de um caminho de renovação para toda a criação. Após a queda dos primeiros pais, a humanidade perdeu o brilho interior, aquela luminosidade que emanava do próprio ser. Com a vinda de Cristo, contudo, surge a possibilidade de restaurar essa visão original e espiritual. Na cruz, quando Jesus entrega seu espírito ao Pai e o véu do Templo se rasga, o olhar humano é novamente iluminado para perceber a verdade última da realidade: Cristo. Na entrega de Cristo, revela-se a própria essência da existência.

Esse olhar transformado permite que os sentidos interiores se abram para a verdade plena, que não é apenas uma ideia, mas uma pessoa: o próprio Cristo, manifestação do amor misericordioso de Deus. Adentrar essa realidade é como entrar no Santuário Divino, uma jornada que exige uma educação profunda do olhar, capaz de reconhecer a beleza que se revela na face de Cristo. O episódio da sarça ardente, então, não apenas comunica a presença divina, mas assegura que o ser humano não precisa mais temer a Deus. Moisés, ao retirar as sandálias, expressa essa reverência renovada e encontra um refúgio além das dores da escravidão e da angústia.

Na presença de Deus, longe das correntes das paixões e do domínio dos sentidos, o ser humano pode encontrar, como Moisés, um caminho de reconciliação. Esse caminho restaura a harmonia perdida no Éden, conduzindo o peregrino da queda à restauração, do jardim primitivo à Jerusalém Celeste. É um trajeto de maravilhamento e contemplação, em que a natureza é reconhecida como lar sagrado, habitado por Deus e compartilhado com a humanidade. Se em Adão houve o encontro com a desobediência, em Moisés há o encontro com a alteridade: a voz divina que chama, não para condenar, mas para dialogar.

A sarça ardente manifesta essa divina-humanidade, onde a relação entre Deus, o cosmo e o ser humano se revela integral e restaurada. Nela, a existência humana é tocada pela eternidade, e o processo contínuo de filiação — ser com o outro e para o outro — se concretiza.

A tradição sempre contemplou na sarça ardente uma representação singular da Mãe e Virgem Maria de Nazaré, onde se revela a união perfeita entre a ação divina e a resposta humana. São Clemente de Alexandria, por exemplo, viu na sarça um símbolo de Cristo, associando-a à coroa de espinhos que envolveu a cabeça do Senhor em sua paixão. No entanto, muitos outros Padres da Igreja, como São Gregório de Nissa e São João Crisóstomo, interpretaram essa imagem como um reflexo da Theotokos — a Mãe de Deus, sempre virgem, antes, durante e após o nascimento de Cristo. Nela, a natureza ígnea do Filho de Deus foi acolhida sem jamais consumi-la, assim como a sarça permaneceu incólume diante das chamas.

Essa rica simbologia mariana é expressa com beleza nos hinos litúrgicos da tradição oriental. Na Ode 9 das matinas de domingo, por exemplo, canta-se:

“O arbusto ardente revelou a imagem da Vossa imaculada natividade. Por isso, hoje nós Vos pedimos: extingui a fornalha das tentações acesa em nós, para podermos exaltar-Vos sem cessar, ó Mãe de Deus.”

Da mesma forma, nas Vésperas de segunda-feira, os fiéis invocam a intercessão da Mãe de Deus, reconhecendo o mistério que ela contém:

“Ó Virgem gloriosa! Moisés, com seus olhos proféticos, viu em Vós um mistério, a sarça ardente que não se consumia, pois o fogo da Divindade, ó Puríssima, não queimou o Vosso ventre. Por isso, Vos pedimos, ó Mãe de nosso Deus: rogai ao mundo a paz e grande misericórdia.”

Esse mistério marca uma mudança profunda no modo de se relacionar com o divino. O culto não se resume mais a atos humanos dirigidos a Deus, mas se torna a acolhida da ação divina na própria humanidade. Cristo, inseparável de sua natureza humana, permanece para sempre unido a nós. E nós, em Cristo Jesus, somos eternamente filhos de Deus.

O ícone da Mãe de Deus na Sarça Ardente é uma expressão visual desse profundo simbolismo. Em sua composição milenar, a Virgem é retratada no centro da sarça, com o Menino Jesus em seus braços, revelando a Encarnação do Verbo. A presença do fogo que não consome recorda o mistério divino que habita Maria: Deus Se fez carne em seu ventre sem destruir sua pureza imaculada.

As chamas que circundam a sarça são, muitas vezes, pintadas em tons de vermelho e ouro, evocando tanto o fogo da presença divina quanto o Espírito Santo que envolve Maria. Em algumas versões, anjos e profetas também aparecem, testemunhando o mistério da Encarnação. A sarça, símbolo da natureza humana, arde na presença de Deus sem ser reduzida a cinzas — assim como a Virgem permaneceu intacta ao conceber e dar à luz o Filho de Deus.

Além de sua dimensão mariológica, o ícone também é cristológico. A presença do Cristo Menino no centro da sarça aponta para a Encarnação como o ápice da história da salvação. Contemplar esse ícone é um convite à fé na presença viva de Deus no mundo, que não aniquila a humanidade, mas a eleva e transfigura. Educar o coração para contemplar essa presença significa abandonar o individualismo em favor da comunhão. É aprender a ver no outro um reflexo da própria presença de Deus, ouvir sua voz, perceber seu gesto. Nesse processo, a realidade ganha profundidade, e o olhar, uma nova dimensão, reconhecendo em cada fragmento do mundo a face amorosa de Cristo.

Por fim, a sarça ardente lembra a pureza inabalável da Mãe de Deus. Embora tenha nascido em meio à humanidade pecadora, ela permaneceu imaculada, sem ceder ao pecado ou ao erro. Sua vida íntegra e sua resposta de amor incondicional a Deus fazem dela o modelo perfeito de abertura à graça divina. Neste mistério, a Igreja reconhece não apenas o papel singular de Maria na história da salvação, mas também a vocação de cada cristão a se deixar incendiar pelo amor de Deus, sem jamais ser consumido.

Por sua vez, a imagem da figueira é associada no Antigo Testamento aos temas da fecundidade — ou sua ausência — e da vida espiritual. Na profecia de Jeremias, Deus ameaça destruir o povo infiel, comparando a ausência de frutos na figueira à falta de justiça entre os israelitas. Na profecia de Oséias, a figueira simboliza a esperança que Deus tinha em seu povo, mas que foi frustrada pela infidelidade. No Novo Testamento, mais especificamente no Evangelho narrado por São Mateus, Jesus amaldiçoa uma figueira estéril, apontando para a falta de frutos espirituais de Israel.


Em contrapartida, a imagem da vinha simboliza a aliança de Deus com seu povo. Deus é frequentemente apresentado como o dono da vinha, esperando que seu povo produza frutos de justiça e amor. Na profecia de Isaías, a parábola da vinha ilustra como Deus cultivou Israel com amor, mas recebeu uvas selvagens, simbolizando a injustiça e a opressão. No Evangelho narrado por São João, Cristo se apresenta como a videira verdadeira, e nós, seus discípulos, como os ramos. Permanecer n’Ele é condição para dar frutos.


Na parábola do Evangelho de Lucas, a figueira plantada no meio da vinha e que não dava frutos simboliza uma situação paradoxal. Embora a vinha e a figueira fossem ambas valiosas, a presença de uma figueira estéril ali era problemática. A figueira, por ser estéril, estava consumindo os nutrientes do solo sem produzir frutos, sendo considerada inútil.  proprietário esperava frutos, mas a árvore não correspondia. Isso simboliza o coração endurecido que, mesmo tendo recebido inúmeras oportunidades, não se converte. O pedido do agricultor para cuidar da figueira por mais um ano ilustra a paciência e a misericórdia do Cristo, que concede tempo para a conversão e para a produção de frutos espirituais. 


É válido ressaltar que a infecundidade espiritual não afeta apenas quem não dá frutos, mas também aqueles ao redor, comprometendo a vitalidade da comunidade, A parábola presente no Evangelho do último domingo um nos traz um chamado para a conversão pessoal e comunitária, para que sejamos capazes de responder com frutos de amor e justiça ao cuidado paciente de Deus.

Partindo para a segunda leitura, a advertência de São Paulo à comunidade de Corinto — "quem julga estar de pé, tome cuidado para não cair" — ressoa profundamente em nossa experiência cotidiana. Ela nos lembra que a autossuficiência é um terreno perigoso, especialmente quando nos convencemos de que nossa força pessoal ou nossas conquistas nos tornam inabaláveis. A autossuficiência muitas vezes mascara uma frágil segurança, construída sobre realizações humanas que não resistem às adversidades da vida.

No contexto espiritual, essa atitude pode nos afastar de Deus e dos irmãos. Quando acreditamos que estamos firmes por nossos próprios méritos, corremos o risco de negligenciar nossa dependência da graça divina. A história do povo de Israel, citado por São Paulo, ilustra essa realidade. Mesmo depois de testemunharem os milagres da travessia do Mar Vermelho e da proteção sob a nuvem, muitos sucumbiram à murmuração e à incredulidade. Essa queda não foi consequência de fraqueza física, mas de um coração endurecido pela ilusão de autossuficiência.

Jesus também nos confronta com essa verdade no Evangelho ao desmistificar a ideia de que desastres e tragédias são punições diretas por pecados pessoais. Ele adverte que, em vez de julgar os outros, devemos olhar para dentro de nós mesmos. A verdadeira segurança não está em evitar sofrimentos, mas em manter um coração convertido e vigilante. A conversão contínua é a resposta ao risco da queda, e ela só é possível quando reconhecemos nossa necessidade constante da misericórdia de Deus.

Além disso, a falsa sensação de estar "de pé" pode comprometer nossos relacionamentos. Quem se julga autossuficiente tende a olhar os outros com superioridade ou indiferença. Isso gera afastamento e falta de compaixão, impedindo que o verdadeiro espírito comunitário floresça. São Paulo nos convida a abandonar a pretensão da autossuficiência e assumir uma postura de humildade, reconhecendo nossas fraquezas e nos apoiando mutuamente.

Portanto, estar de pé não significa estar imune à queda, mas estar consciente de nossa vulnerabilidade. A verdadeira firmeza vem da confiança em Deus e da prática do amor ao próximo. Quando admitimos nossa dependência da graça divina, somos fortalecidos para enfrentar as provações e permanecermos de pé, não por nossos próprios méritos, mas pela força que vem do Senhor.

Voltando a refletir sobre o Evangelho dominical, podemos ver que, pela misericórdia do Senhor, recebemos o adubo de sua graça. Assim como o vinhateiro da parábola pediu mais tempo para cuidar da figueira, Deus nos concede a oportunidade de conversão. Os sacramentos, especialmente a Eucaristia e a Reconciliação, são fontes de graça que renovam nossa alma e nos fortalecem para frutificar em boas obras. Para quem não está em estado de graça, esse é um momento favorável para buscar o perdão e a restauração. A confissão é um caminho de reencontro com Deus, uma resposta ao convite à conversão que Jesus nos faz insistentemente.

Caríssimos, lembremos também de nossa origem espiritual. Moisés foi tirado das águas do Nilo e, mais tarde, chamado para conduzir o povo à liberdade. Nós, pelo Batismo, também fomos tirados das águas e passamos a fazer parte do povo de Deus. Essa experiência não é apenas um marco do passado, mas um chamado contínuo a viver nossa missão. Assim como Moisés foi enviado para libertar o povo oprimido, somos chamados a anunciar o Evangelho, a ser instrumentos de reconciliação e a trabalhar pela justiça e pela paz.

A conversão não se trata apenas de abandonar o pecado, mas de cultivar uma vida de verdadeira comunhão com Deus e com os irmãos. É tempo de rever nossas atitudes, reconhecer onde estamos fechados em nós mesmos e pedir a graça de um coração renovado. Que o temor de cair não nos paralise, mas nos torne vigilantes e atentos à voz do Senhor, que constantemente nos chama a dar frutos de amor e serviço.

Aquele que está de pé deve ter cuidado para não cair, como nos recorda São Paulo. Isso não significa viver com medo, mas com humildade e confiança. Reconhecer nossa fragilidade é abrir espaço para que a força de Deus atue em nós. Quando buscamos os sacramentos e vivemos uma vida de oração, fortalecemos nossa caminhada e encontramos o sustento necessário para permanecermos fiéis.

Somos convidados a acolher o tempo de graça que Deus nos concede. Não deixemos para depois a oportunidade de reconciliar-nos com o Senhor e com nossos irmãos. Que o exemplo de Moisés nos inspire a ouvir a voz de Deus e a responder com coragem. A missão de libertação que ele assumiu continua em nós, chamados a ser presença de esperança no mundo.

Que cada um de nós possa, com o auxílio da graça divina, fazer frutificar a vida nova que recebemos no Batismo. E, quando nos sentirmos fracos ou distantes, lembremo-nos de que Deus sempre nos oferece o adubo necessário para recomeçar. Não endureçamos o coração, mas acolhamos com alegria o chamado à conversão e à vida plena no Senhor.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!




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